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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

LABORATÓRIO II - NIJINSKY: O FAUNO

“A conformidade do pé de Nijinsky parece confirmar a teoria transformista; o pé deste bailarino, filho, neto e bisneto de bailarinos, não é construído anatomicamente como o dos outros sêres humanos. A sua estrutura aproxima-se da ave; quando dobra o pé, relativamente muito curto, fazendo sobressair o calcanhar, a extremidade deste está a uma distância quase igual do tornozelo e dos dedos. Esta distância excepcionalmente longa entre o tornozelo e o calcanhar é acompanhada evidentemente duma mesma proporção – ou desproporção, - do tendão de Aquiles, cujo tamanho condiciona as possibilidades de altura de salto. Estes pormenores foram revelados numa radiografia feita em 1916”(REISS; 1958).
Vaslav Nijinsky revolucionou a dança masculina moderna com seus "saltos felinos". Seu corpo, portador de pés-alados, aptos para uma revolução na dança, não pôde ser habito por Nijinsky. Aos 30 anos o bailarino russo já estava em sua Nau...
A psique funda-se nas marcas corporais. No caso de Nijinsky a dança viabilizou algum tipo de metaforização que ligava corpo e psique? O episódio mais significativo dessa relação ocorreu nos espetáculos do fauno. A referência à música de Claude Debussy - Prélude à L’après-midi d’un faune - obra escrita num espaço de dois anos (1892-1894), retrata de maneira perfeita a incorporação que Nijinsky demandava. Cito-a:
“Esta breve peça, quase reminiscente de música de câmara, com sua magia sonora envolvente para a qual concorre grandemente uma distribuição instrumental de sutis equilíbrios, tem o seu tema inicial em arabesco confiado à flauta. Semelhante a uma improvisação melancólica, ele resulta sempre em novas variações e paráfrases, interrompidas de quando em vez por curtos momentos rítmicos cheios de energia. Em tudo e por tudo trata-se de um casamento perfeito com o poema bucólico de Stéphane Mallarmé[1] sobre um fauno, dormitando no horário da siesta mediterrânea, que vai à caça de ninfas para depois, cansado e satisfeito, entregar-se de novo a um descanso letárgico. Contudo, ele não obteve reconhecimento mundial até ser coreografado por Vaslav Nijinsky em 1912 para os Balés russos de Serge Diaghilev”[2].
A música possui nove minutos e dois segundos de execução. Nijinsky realizou sua coreografia em doze minutos, estendendo em três sua leitura. Durante a apresentação, muitas foram as reações diante da criação deste bailarino. Ao final do espetáculo temos um fauno em cena masturbando-se como um animal que ao tentar acasalar não é satisfeito, procurando sozinho a descarga de excitação. No fechamento das cortinas, temos um homem em plena vivência pulsional, que por não ter encontrado representação possível, descarregou no corpo aquilo que a psique não mais suportava. Nijinsky, naquele instante de tempo, transformou-se em um fauno. Metonimicamente parece incorporar as cenas criadas no poema de Mallarmé e as encena no palco. Diaghilev rapidamente vai de encontro ao bailarino para se certificar do ocorrido. Encontra um bailarino exausto, ainda meio homem meio bicho. Cena de um processo de transição ou tradução do ocorrido, Nijinsky parece, neste momento, estar buscando significar, ou seja, metabolizar psiquicamente sua vivência. Transformar-se em fauno foi a saída para uma descarga, na carne, de uma energia libidinal que não encontrou caminhos metabolizáveis por sua psique. Este episódio único, no palco, despertou em Nijinsky a angústia de ser acometido pela mesma doença de seu irmão mais velho – a loucura.
Maribel Portinari nomeia este fato como “O Escândalo do Fauno”[3]. Além de conter este quiproquó, e que Fokine resumiu como “degenerada perversão” (FOKINE apud PORTINARI; 1989: 118), temos a atuação de Nijinsky em cena, oferecendo ao público tanto os seus “saltos felinos” reconhecidos como uma das peças de revigoramento do balé masculino, quanto uma dança na qual “os passos do fauno tinha algo de animalesco e sua perseguição às ninfas, que lhe escapam, terminava em masturbação sobre um véu perdido” (Portinari;1989:118). A reação a este corpo animalesco veio por parte do público e por parte do diretor da revista Le Figaro, que em editorial afirmou: “tivemos um fauno inconveniente com vis movimentos de bestialidade erótica e gestos despudorados. Justas vaias acolheram a excessiva pantomima desse corpo de bicho mal construído, horrendo de frente e mais horrendo de perfil. O verdadeiro público nunca aceitará esse realismo grotesco” (CALMETTE apud PORTINARI; 1989: 118. Grifo meu).
Enfatizei o palco por ser o lugar facilitador para Nijinsky de se comunicar, pois este corpo-psique encontrava na dança um elo, um sentido, um meio de comunicação que suprimia seu déficit com as palavras. Na perspectiva da obra de Aulagnier, o corpo é fundamental para pensar a escuta a qual nós, analistas, propomos, pois a psique faz um empréstimo ao modelo somático. A noção de corpo que a autora apresenta é um “conjunto de funções sensoriais, elas mesmas veículos de uma informação que não pode faltar por ser a condição da sobrevivência psíquica e somática... A relação psique-corpo tem sua origem no empréstimo que a primeira faz do modelo de atividade próprio ao segundo...”(Aulagnier; 1975: 21).
Pensando esta noção de corpo aliada à de sujeito, esta teorização pode responder a determinados impasses que se vivencia no processo de escuta do psicótico. Principalmente para tentar compreender, ou ter mais subsídios para melhor investigar uma sensação de vazio que surge, na situação analítica, decorrente de uma fala repleta de signos desarticulados sem sentido.
O que Nijinsky vê quando olha para o espelho? Diz ele:
“Construirei um teatro com uma forma redonda, como um olho. Gosto de olhar intimamente no espelho e vejo um olho só na minha testa” (Nijinsky; 1918).
Estamos diante de uma incapacidade de fugir do sofrimento, o que Aulagnier[4] chamou de impossibilidade material e libidinal para fazê-lo. O corpo de Nijinsky, vivido e habitado por tantas outras pessoas e animais, parece ser aquele corpo infantil que experimentou através da sensorialidade um contato com o mundo: “O Eu encontrou primeiro seu próprio espaço corporal como o representante metonímico desse espaço que nomeamos realidade...”(Aulagnier; 1990:71).
O corpo como fonte de sofrimento e somente enquanto tal pode aglutinar em si um poder de destruição, mortífero. Nijinsky faz uma equação interessante. Ao se deparar com um corpo que não consegue habitar, mas consegue permitir ser habitado por outrem, ele consegue erotizar seu sofrimento. E é assim que Nijinsky encena no corpo a cena poética de Mallarmé sobre o Fauno. Anos depois, a unidade corporal de Nijinsky será sustentada, não mais pela incorporação de um fauno, mas pela incorporação de Deus em um delírio.
[1] MALLARMÉ, Sthéfane. L’après-midi d’un faune. In: Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1945. Segue logo abaixo uma tradução de Dante Milano deste poema.
[2] Encarte do CD de Claude Debussy, texto intitulado Imagens de Ondas, Nuvens e Seres Imaginários, com tradução de Roberto Travassos Vieira. P. 5.
[3] Título dado a passagem do seu livro no qual escreve sobre os acontecimentos em torno da criação coreográfica de Nijinsky de L’Après-Midi d’un Faune(1912), no livro: PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
[4] AULAGNIER, Piera. A “filiação” persecutória. Op. cit. p. 69-81.

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MALLARMÉ

A SESTA DE UM FAUNO

Écloga

O FAUNO

Estas ninfas, eu quero perpetuar.
Tão leve.
O seu claro rubor que um volteio descreve
No ar dormente, denso de sono.
Amei um sonho?
À dúvida, montão de antiga noite; ponho
Fim, ao ver deste bosque a sutil ramaria
Provar-me que eu, na solidão, me oferecia
Em triunfo, aí de mim! a falta ideal de rosas.
Reflitamos...
Serão mulheres fabulosas
Que à exaltação dos teus sentidos atribuis?
Fauno, a ilusão se escapa dos olhos azuis
E frios, como fonte em prantos, da mais casta:
Toda suspiros, a outra, achas que ela contrasta
Qual brisa matinal quente no teu tosão?
Mas não! No lasso espasmo e na sufocação
Do calor, que a manhã combate, não murmura
Água se não a verte a minha flauta pura
De acordes irrorando o bosque; e o único vento
Pronto a exalar pelos dois tubos seu alento
Antes que em chuva árida espalhe os sons em fuga
É, no horizonte que não frisa uma só ruga,
O visível, sereno sopro artificial
Da inspiração, que ao céu retorna
Ó pantanal
Siciliano, cuja orla sossegada e vasta,
Rival dos sóis, a minha vaidade devasta,
Tácito, num florir de mil centelhas, CONTA:
“Que eu, um caniço aqui talhando, a flauta pronta,
Feita com arte, eis o ouro Glauco dos relvedos
Distantes dedicando a fontes seus vinhedos,
Ondeia uma brancura animal em repouso:
Ao alento preludiar do caniço, o gracioso
Vôo de cisnes, não! de náiades se assusta,
Foge ou mergulha...”
Tudo ferve na hora adusta,
Sem que se possa ver onde se esconderá
Tanto himeneu, cobiça de quem busca o lá:
Então despertarei, nos primeiros fervores,
Hirto e só, sob uma onda antiga de esplendores,
Lírios! e a um deles igual, a mesma ingenuidade.

Não o doce nada que de seus lábios se evade,
O beijo suave que perfídias assegura,
Meu peito, antes inatcto, atesta a mordedura
Misteriosa, devida a algum augusto dente;
Mas basta! arcano tal busca por confidente
O cálamo que sob o azul ressoa, quando
Da face para si a turbação desviando,
Sonha, num solo longo, ir assim distraindo;
A beleza em redor, a ela e a nós confundindo
Num engano que o nosso canto dissimula;
E fazer, no tom em que o amor se modula
Desvanecer-se do habitual sonho, de lado
Ou de costas, ao meu olhar semicerrado,
Uma sonora, vã e monótona linha.

Busca, pois, instrumento da fugas, maligna
Siringe, reflorir nos lagos, me aguardando!
Fero do meu rumor, continuarei falando
Dessas deusas; e, por idólatras pinturas,
Às suas sombras hei de arrancar as cinturas:
Assim das uvas ao sorver a claridade,
Para a mágoa banir fingindo alacridade,
Rindo ergo ao céu estivo o meu cacho vazio:
Soprando as peles luminosas me inebrio,
Até o anoitecer olhando através delas.

Ninfas, ressoprarei outras LEMBRANÇAS belas:
“Meu olhar dardejava, entre os juncos, um bando
De colos imortais seu ardor mergulhando
N´água, com gritos de ira até o céu da floresta;
No banho imergem-se as cabeleiras em festa
Entre frêmitos e brilhos, ó pedrarias!
Corro e duas surpreendo enlaçadas (pungia-as
O lânguido sabor do mal de serem duas),
Sonolentas, os braços soltos... e assim nuas
Eu as rapto, sem as desenlaçar, e em meio
A um maciço, da fútil sombra odiado, cheio
De rosas cujo aroma o sol ardendo inala,
A nossa festa ao dia incendido se iguala.”

Adoro a cólera das virgens, ó delícia
Feroz do sacro fardo nu que com malícia
Foge ao meu lábio em fogo ao absorver-lhe, tal
Um relâmpago, o íntimo frêmito carnal:
Dos pés da desumana ao coração da tímida
Entregando de vez sua inocência, úmida
De lágrimas e de menos tristes vapores.
“Meu crime foi, feliz de vencer os temores
Fingidos, apartar o tufo desgranhado
De beijos, que os deuses guardavam bem trançado:
Pois apenas fui ocultar um riso ardente
Entre as pregas sutis de uma delas (somente
Com um dedo a outro retendo, em seu candor de pluma,
Tingida do fervor que acende a irmã, nenhuma
Vergonha enrubescendo a ingênua, ao ver agrados)
De meus braços, por vagas mortes extenuados,
Aquela presa, eterna ingrata, se livraria,
Sem pena do soluço em que eu ébrio ofegava.”

Tanto faz! que ao prazer outras me arrastem pelos
Chifres atados às pontas dos seus cabelos:
Sabes, minha paixão, que purpúrea e madura
Cada romã explode e de abelhas murmura;
E o nosso sangue, a quem o atrai, se dá sem pejo
E fui com todo o enxame eterno do desejo.
Na hora em que o bosque de ouro e de cinzas se esmalta
Na folhagem extinta uma festa se exalta:
Etna! É sobre o teu chão, visitado por Vênus
Pousando em tua lava os brancos pés ingênuos,
Quando ronca um som triste ou a chama de acalma.
Agarro a deusa!
Ah, certo é o castigo...
Oh, não! a alma
De palavras vacante e este corpo indolente
Sucumbem ao torpor do meio-dia ardente:
Quero agora dormir, a blasfêmia olvidar,
E na areia jazendo, abrir a boca ao ar,
Do astro do vinho haurindo os raios eficazes!

Ninfas, adeus; vou ver vossas sombras fugazes.

(Tradução de Dante Milano)
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Na próxima postagem sobre Nijinsky, pretendo pontuar as cenas do poema de Mallarmé com a encenação do bailarino. Aqueles que quiserem participar deste exercício teórico estão convidados.

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