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domingo, 23 de maio de 2010

Pulsão de Morte? Sim!

No Jornal do Brasil deste domingo tivemos uma matéria assinada pelo Prof. Dr. Haron Gamal (Literatura Brasileira UFRJ) sobre o livro de André Martins intitulado "Pulsão de Morte?". Uma crítica muito bem formulada que se serve da filosofia e dos fundamentos da psicanálise como vias de acesso para questionar a tese defendida no livro, sobre uma possível inexistência da pulsão de morte.
Pois, o que gostaria de ressaltar não diz respeito diretamente ao livro, cujo qual não li, mas ao impuxo atual de negar o conflito, as guerras, a violência e o ódio no cerne do laço social. Fala-se em harmonia (é só conferir o tema da semana nacional dos museus[1]), de uma dimensão não conflituosa nas relações heterogêneas, em um consenso que beira as famosas defesas neuróticas responsáveis pelo recalque, ou seja, pela negação do conflito e seu retorno substituto em um sintoma gozador. Gozação que produz vários imperativos e sofrimentos.
Há muito deixamos de crer na inocência infantil, no discurso vitimizado dos humilhados e ofendidos, em todo e qualquer discurso que tente mascarar a responsabilidade de cada singularidade naquilo que vive. Há desejo e por isso há inconsciente e há pulsão de morte! O ódio presente no laço social é a maior expressão da força da pulsão de morte.
O que dizer das cenas odiosas em nossa sociedade? São indícios importantes dos mecanismos de entrelaçamento do sujeito com o Outro pela via do ódio. A violência encenada aponta para significantes encarnados de ódio que sustentam as agressões que subjazem os sistemas paranóicos de controle social, assim como as eleições de um grupo que determina eliminar/odiar outro. Os exemplos são diariamente produzidos: o bullying nas escolas, as brigas entre gangues, as seitas religiosas que elegem o suicídio de seus membros, os conflitos religiosos legitimados pelo significante “guerra santa”, a eliminação dos chamados subversivos nos governos ditatoriais. Além das duas grandes guerras que produziram cicatrizes e marcas profundas. Atos e discursos[2] que se sustentam no laço engendrado pelo mandato da eliminação do outro grupo, pessoa ou idéia eleito a odiar/eliminar.
Odiar e eliminar são verbos conjugados com toda sua força em tempos de guerra, mais do que indicar o objeto a ser eliminado, o ódio funciona para o grupo que odeia como elo comum que sustenta o enlaçamento interno entre seus membros. Um exemplo pode ser pensado a partir da obra “A Dor” de Marguerite Duras. Um livro de memórias no qual o fim da segunda grande guerra toma a cena. Pela via literária, essa mulher lúcida, dá litoral às suas lembranças de juventude. Narra, não só o seu martírio e a esperança em ter de volta seu marido e seu amor, mas também o sofrimento de pais, mães, filhos e mulheres de desaparecidos. Além de escritora, Duras era Militante da Resistência e membro do Partido Comunista Francês. Funda um Serviço de Buscas para localizar desaparecidos de guerra. Filas enormes de parentes se formam para receber notícias ou os pertences dos desaparecidos. Uma dessas filas é formada por mulheres de desaparecidos judeus que reagem com indignação ao fato de um padre ter acolhido um órfão de pais nazistas. Duras percebe o conflito ali em jogo – de um lado viúvas judias recebendo os restos que denunciavam o horror do extermínio dos seus maridos e filhos, do outro lado o acolhimento àquele que descendia dos nazistas. Ela comenta: “Permitia-se perdoar, absolver, ali, imediatamente, ato contínuo, sem ter a mínima noção do ódio que imperava, terrível e bom, consolador como uma fé em Deus” (DURAS; 1986: 30). Um ódio que consola dá contorno à angústia, freia a devastação produzida pela guerra, pelo o que significa o ato do extermínio em massa e barra a invasão de uma barbárie que tem na morte uma meta (pura pulsão de morte!). Preservar o investimento na vida, principalmente nesse contexto social-histórico é fazer algo com o ódio que está no cerne do laço social. Negar a pulsão de morte é neutralizar a força também criadora quando a pulsão de vida consegue capturar a pulsão de morte e colocá-la a seu serviço.
Inúmeros escritos[3] sobre a guerra nos dão notícia de um laço social sustentado pelo ódio. Em Freud temos indicações sobre a complexidade do ódio e das pulsões cruéis e de destruição. Tais indicações fazem referência ao afeto de ódio como primeira modalidade de vínculo entre o sujeito e o outro. Em sua obra destinada a apresentar detalhadamente sua concepção da segunda tópica, “El yo y el ello” (1923), Freud nos fala do ódio como precursor do amor:
Nos está permitido sustituir la oposición entre las dos clases de pulsiones por la polaridad entre amor y odio. Hallar un representante del Eros no puede provocarnos perplejidad alguna; en cambio, nos contenta mucho que podamos pesquisar em la pulsión de destrucción, a la que el odio marca el camino, un subrogado de la pulsíon de muerte, tan difícil de asir. Ahora bien, la experiencia clínica nos enseña que el odio no solo es, con inesperada regularidad, el acompañante del amor (ambivalencia), no sólo es hartas veces su precursor em los vínculos entre los seres humanos, sino tambíen que, en las más diversas circunstancias, el odio se muda em amor y el amor en odio. (FREUD; 1923/2007: 44)
Tentar negar a pulsão de morte é fechar os olhos e os ouvidos para a angústia, para todo um endereçamento de questões importantes que ficam sem meios de trabalho para elaboração. É tamponar todo um saber que nos vem desde os gregos com o mito de Pandora, Aristóteles com a Retórica das Paixões, Descartes com as Paixões da Alma. É fazer de Freud um tolo perturbado, quando na verdade toda sua genialidade foi de ver o que era próprio do humano. É desconhecer o saber ancestral e popular que nos informa da dualidade entre os afetos de amor e ódio. O conceito lacaniano de amódio resume bem isso. Pior ainda é naturalizar aquilo que é simbólico! Digo isto a partir da experiência psicanalítica que me levou hoje em curso de doutorado a pesquisar o ódio nas paranóias persecutórias. É preciso não temer a investigação e um pensamento que leve em consideração a pulsão de morte. Fugir do inevitável enfraquece a potência da vida, mergulhando o sujeito no engodo de uma fantasia morta desde o princípio por ter abandonado a força da criação.
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[1] vide blog http://gpeculturais.blogspot.com/2010/04/museus-e-harmonia-social.html do antropólogo Alexandre Fernandes Corrêa.
[2] É importante ressaltar que ao elencar tais exemplos não os situo dentro de uma mesma problemática cuja especificidade e construção respondem a determinantes variados. O que chamo a atenção é que há um laço de ódio que posiciona de um lado um grupo que se define pela missão de agredir o outro, ou por que se sente perseguido ou porque deve perseguir.
[3] TOLSTOI (1865-69); FREUD (1915, 1923, 1932, 1938); DURAS (1986); ARENDT (1958, 1994).
Imagem: II Trionfo della morte

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