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sábado, 14 de novembro de 2009

O ÓDIO, O MAL, A MORTE...




A morte é o destino da vida... Todo o trabalho com a palavra é de fazer este destino chegar no momento certo. Toda a impossibilidade de simbolizar a castração nos leva ao pacto erótico com o ódio, o mal e a morte. Esta última pelas vias da crueldade e destruição. O exercício diabólico deste pacto pode ser encontrado como função das cenas odiosas, na sociedade, por exemplo, nas agressões que subjazem os sistemas paranóicos de controle social, nas eleições de um grupo que determina eliminar/odiar outro, nas guerras entre gangues, em seitas religiosas que elegem o suicídio de seus membros. Atos e discursos que se sustentam no laço engendrado pelo mandado da eliminação do outro grupo eleito a odiar/eliminar. No texto Situação da Psicanálise e formação do psicanalista em 1956, Lacan, no meu entender, aponta o ódio como fonte de investimento tal, capaz de permitir que identificações coletivas silenciem o sujeito na “conquista do poder” ao ponto de produzir, na identificação ao líder, uma sujeição capaz de produzir também o tirano. Sobre o ódio nessa função do grupo Lacan afirma:
“Numa busca de saber, uma certa recusa que se mede no ser, para-além do objeto, é o sentimento que agrega mais fortemente a tropa: esse sentimento é conhecido, sob uma forma patética; nele se entra em comunhão sem comunicar, e ele se chama ódio”(Lacan;1956/1998:482).

Na psicose, singularmente na paranóia, a eleição de um objeto de investimento de ódio também produz a dupla perseguido-perseguidor. Assim, apresento aqui inquietações de uma pesquisa que, neste primeiro instante, se interroga sem pretensões de fornecer respostas, mas formular com o maior rigor possível a questão norteadora de um tempo de investigação que se inicia.

PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
J. Lacan introduz a figura do Kakon (inimigo interior) para falar da agressividade em três momentos de sua obra. O primeiro uso do termo se dá quando analisa o ato de ódio encenado no “crime imotivado” pela paranóia de Aimée, caso clínico de sua tese intitulada Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932) . Retoma o termo num segundo tempo, em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946) e, finalmente, o faz trabalhar no momento em que se dirige diretamente ao assunto em A agressividade em psicanálise (1948).
No primeiro instante, em 1932, no caso Aimée, a lógica da agressividade e do ato criminoso de sua paciente é desvelada no processo de sua própria cura, nos afirma o autor. Sofrente de uma paranóia de autopunição, diagnosticada assim por Lacan, Aimée só finda seu delírio quando recebe a punição de ter agredido violentamente uma famosa e respeitada atriz. Ela mesma escrevia e nutria ambições literárias. No decurso de sua análise, suas identificações apontam para o fenômeno no qual as imagens de seus ideais transformam-se posteriormente em fonte de ódio e perseguição, Lacan salienta assim que “a mesma imagem que representa seu ideal é também o objeto de seu ódio” (Lacan; 1932/1976:230)
As ameaças de morte contra seu filho eram recorrentes em sua crença delirante, assim como as ameaças sofridas de tirá-lo de seus cuidados. Posteriormente, será sua irmã mais velha quem assumirá seu lugar de mãe nos cuidados de seu filho. Irmã que se recusará a ter de volta o convívio com Aimée. Primeira fonte de identificação que ocupa o lugar de perseguidora. Na “sucessão das perseguidoras” sua amiga mais íntima ocupará o lugar de endereçamento de seu ódio.
Aimée se interroga sobre “Quem eram os inimigos misteriosos que pareciam estar perseguindo-a” (Lacan;1932/1976:146). Sua agressão contra a atriz, numa tentativa de “matar a doença objetivada” (Ibid:216), é o momento no qual Aimée “leva a cabo o ato fatal de violência contra uma pessoa inocente, na qual vê o símbolo do inimigo interior” (Idem), o Kakon.
Afinal, qual a “história cultural desse significante”? A figura do Kakon nos remete à mitologia grega representada por Pandora, primeira representante da mulher bela e má. Zeus teria inserido o engano na vida dos homens, através da bela mulher, para enfatizar o mal inevitável - o bem (Kalón) deve permanecer num convívio dialético com o mal (Kakon). O Kakon então, se torna o “inimigo interior”, o mal que habita no homem. O “ódio de si” que habita em cada um de nós.
O tempo que Lacan destina à compreensão da tendência agressiva se dá em Formulações Sobre a Causalidade Psíquica (1946) quando o conhecimento paranóico é mencionado na medida em que “a loucura é um fenômeno do pensamento” (Lacan; 1946/1998:163) e então propõe um retorno a Descartes em sua obra Meditações, mas temos ainda outra obra deste cartesiano intitulada As paixões da Alma na qual aproxima o bem do amor e o mal do ódio. E é justamente essa aproximação que gostaríamos de investigar.
Neste texto Lacan recupera várias questões do caso de Aimée, como uma espécie de um tempo destinado a compreender algo de sua lógica delirante: “tudo isso pelo qual o alienado, através da fala ou da pena, comunica-se conosco” (Lacan; 1946/1998:168) diz ele, buscando o nó do discurso, de suas significações, na medida em que na psicose tudo é signo.
Prossegue na organização dos pontos de estrutura do delírio de sua paciente. Já no primeiro ponto trata da questão do ódio quando aponta “a linhagem das perseguidoras” como a repetição da “personificação de um ideal de malignidade contra o qual sua necessidade de agressão vai crescendo”(169-170), e observa que Aimée “tendeu em sua conduta a realizar, sem reconhecê-lo, o próprio mal que ela denunciava”(170).
A figura do Kakon é retomada aqui para pensar na significação do ato delirante e assim busca novamente o trabalho de Paul Guiraud para junto com ele afirmar que “não é outra coisa senão o Kakon de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (176). Conseqüentemente Lacan chega às questões especulares da constituição do sujeito no campo da dialética identificatória e se detém no registro imaginário para recuperar a dimensão da alienação própria ao estádio do espelho, seu nó imaginário e o que ele carrega de mortífero. Recupera então a noção freudiana da pulsão de morte e do narcisismo e conclui que “no limiar do desenvolvimento psíquico, eis aí ligados o Eu primordial, como essencialmente alienado, e o sacrifício primitivo, como essencialmente suicida: ou seja, a estrutura fundamental da loucura” (Lacan; 1946/1998:188)
A noção de Kakon é retomada dois anos depois, em um momento para concluir, novamente atrelada às referências ao caso Aimée. Trata-se do texto de Lacan intitulado A Agressividade em Psicanálise (1948) no qual retoma, mais uma vez, a referência a Freud em seu conceito de pulsão de morte para colocá-lo no cerne da noção de agressividade no que se refere à economia psíquica. Argumenta que para pensar sobre a tendência à agressão é necessário introduzir a noção de libido e localiza que tais tendências se mostram fundamentais nas psicoses paranóicas.
Afirma então, citando seu caso Aimée que “o ato agressivo desfaz a construção delirante” (Lacan; 1948/1998:113) e pontua que “o diálogo em si parece constituir uma renúncia à agressividade” (Lacan; 1948/1998: 109). Retoma, portanto, a noção de Kakon para introduzir uma reflexão sobre o primeiro tempo da dialética das identificações, centrada no Estádio do Espelho. Discute os fenômenos da “organização original das formas do eu e do objeto” (Lacan; 1948/1998:113) e recupera mais uma vez a dimensão paranóica do eu. Afirma ser necessário, para compreender a agressividade, buscá-la nessa encruzilhada estrutural em relação ao “formalismo de seu eu e de seus objetos” e conclui: “essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu” (Lacan; 1948/1998: 116). Portanto, a estrutura paranóica do eu se mostra quando “o sujeito nega a si mesmo e acusa o outro” (Lacan; 1948/1998: 117).
Nesse sentido, Lacan questiona a “incidência despedaçadora na imago da identificação original” (Lacan; 1948/1998: 118) quando sucumbe à persistência dos “maus objetos internos” e localiza “o extremo arcaísmo da subjetivação de um kakon” no campo original da “formação primária do supereu” (Lacan; 1948/1998: 119). Aqui temos a relação entre o investimento odioso nas figuras que antes foram objetos eleitos de identificação.
Ao final do Seminário 3: As Psicoses (1955-1956), Lacan apresenta três etapas da foraclusão para pensarmos a lógica do delírio, são elas: 1. Cataclisma imaginário; 2. Desdobramento separado e investido por todo o aparelho significante e 3. Após o encontro, a colisão, com o significante inassimilável, trata-se de reconstituí-lo. A impossibilidade de inscrição e, conseqüente deriva em busca de reparar o dano pela foraclusão do significante primordial impõe ao sujeito psicótico o fracasso da relação amorosa, pois que, nos diz Lacan: “para o psicótico uma relação amorosa é possível abolindo-o como sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse amor é também um amor morto” (Lacan; 1956/1988: 287).
Freud e Lacan delineiam um caminho possível no estudo da paranóia quando sinalizam a anterioridade do ódio ao amor como formulação teórica para compreensão da constituição do sujeito. Freud afirma, no Caso do Homem dos ratos (1909), que: “o ódio, sobretudo, conservando-se suprimido no inconsciente por ação do amor, desempenha um grande papel na patogênese da histeria e da paranoia” (Freud, 1909/1987) e Lacan nos diz que “a psicose é uma espécie de falha no que concerne a realização daquilo que é chamado 'amor'. (Lacan, 1976). Essa falha, no que concerne ao amor, aponta para a linha que amarra o imaginário com o real, essa fenda do ódio, no qual não há mediatização simbólica possível que barre as figuras do mal, como os demônios, as bruxas, os feiticeiros e a malignidade de intenções e ações interpretadas assim pelo sujeito, revelando um Outro sem perda, mortífero, sem Lei. Cabe ao sujeito assumir literalmente “o ódio, que é o que mais se aproxima do ser”, ao qual Lacan denomina de “ex-sistir” (Lacan, 1955/1966) que se traduz pelo ódio primordial a toda alterização que implica a dialética alienação/separação. No campo dos discursos, que é o do laço social, o ódio se apresenta pelas vias da agressividade e da violência diante das figuras que encarnam o mal ou que apenas figuram índices da alteridade. Se o psicótico também é um sujeito dividido e se insere nos quatros campos do discurso, o ódio no interior do laço social pode fornecer subsídios para a construção da metáfora delirante, por viabilizar uma simbolização possível que compreende os investimentos do sujeito para dar conta da deriva atrelado a um Outro absoluto que goza dele.
Para concluir, retomo o que havia dito no início, sobre esse primeiro tempo desta pesquisa que se inicia, tentando pensar sobre qual aproximação pode ser feita entre os fenômenos paranóicos coletivos e os individuais. Ambos, com as devidas distinções, obedecem a essa captura da configuração primordial de uma identificação primeira do registro imaginário? Recuperando a reflexão lacaniana do início desta fala, sobre o ódio da sujeição dos tiranos que serve de investimento à união da tropa, é possível encontrar nesses fenômenos sociais alguma analogia com os fenômenos psicóticos no que se refere ao ódio endereçado ao que antes era fonte de idealização e identificação quando Lacan, nos dois casos, fala de algo impossível de simbolizar?

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